Portugal continua a ser um dos países da União Europeia com maior consumo de antibióticos, registando valores acima da média europeia. Em vésperas do Dia Europeu do Antibiótico, Hélder Pinheiro, médico infeciologista e Professor Auxiliar da NOVA Medical School, e Conceição Calhau, Professora Catedrática e investigadora da NOVA Medical School, alertam para a importância do uso correto e responsável dos antibióticos e advertem que a toma excessiva ou inadequada pode ter consequências graves para a saúde.
Para o especialista em Doenças Infeciosas, a realidade nacional resulta não apenas de práticas clínicas que podem ser otimizadas, mas também de uma cultura de automedicação e de expectativa de cura imediata. Relembra que nem todas as infeções precisam de antibióticos, uma vez que muitas são de origem vírica, e nesses casos o seu uso é ineficaz e prejudicial. “Os antibióticos não são analgésicos nem antigripais. São medicamentos importantes que devem ser usados apenas quando há verdadeira indicação médica. Além disso, precisamos de uma maior literacia em saúde para os utilizar corretamente”, defende.
Conceição Calhau alerta que o uso inadequado destes medicamentos pode ter efeitos prolongados sobre a microbiota intestinal, o conjunto de triliões de microrganismos que habitam o nosso corpo e desempenham papéis fundamentais na digestão, no metabolismo, na imunidade e até na regulação da saciedade. “Durante muito tempo acreditou-se que todos os microrganismos eram prejudiciais. Atualmente, sabemos que vivemos em simbiose com eles – e que dependemos deste ecossistema para manter a saúde. O uso incorreto de antibióticos pode desequilibrar esta comunidade e favorecer doenças metabólicas como a obesidade. Proteger o microbiota é proteger o sistema imunitário, o metabolismo e a nossa própria longevidade”, explica.
A disbiose – termo que descreve o desequilíbrio da microbiota – pode resultar da utilização repetida ou indevida de antibióticos, levando à perda de espécies benéficas e à proliferação de microrganismos menos desejáveis. Este fenómeno está associado ao aparecimento de microrganismos portadores de genes de resistência a antibióticos – um dos grandes desafios da saúde pública global. A chamada resistência antimicrobiana ameaça anular décadas de progresso médico, tornando novamente perigosas infeções que antes eram tratáveis. Além disso, a disbiose está também relacionada ao aumento do risco de doenças metabólicas e inflamatórias.
Desde 2006, a ciência tem demonstrado de forma consistente que a disbiose pode alterar a forma como metabolizamos nutrientes e regulamos a saciedade. Estas alterações interferem com substâncias essenciais ao metabolismo, como o butirato e o GLP-1, e estão na base de várias doenças crónicas.
Probióticos, fibras e prevenção
A especialista destaca que, sempre que o uso de antibióticos é necessário, é importante adotar medidas queminimizem o impacto negativo sobre a microbiota e ajudem na sua recuperação. “Associar o tratamento antibiótico a probióticos e prebióticos, bem como manter uma alimentação rica em fibras, são estratégias eficazes para restaurar o equilíbrio intestinal”, recomenda.
Entre os probióticos, destaca a levedura Saccharomyces boulardii, que pode ser administrada em simultâneo com o antibiótico prescrito, pois, ao ser uma levedura (e não uma bactéria), não é afetada pela ação do medicamento. Conceição Calhau refere que “curiosamente, já existem recomendações clínicas que incluem essa abordagem integrada: por exemplo, na erradicação do Helicobacter pylori, há evidência de que a associação da levedura Saccharomyces boulardii à terapêutica antibiótica melhora a eficácia do tratamento e reduz os efeitos adversos.”
Na escolha do probiótico, é essencial optar pela estirpe específica recomendada pelas guidelines médicas, uma vez que estas diretrizes garantem que os benefícios clínicos e a segurança estão comprovados nessas estirpes, devidamente estudadas e documentadas. O uso de produtos com estirpes não validadas pode comprometer a eficácia do tratamento e a confiança nos resultados terapêuticos.
Conceição Calhau relembra que “durante muito tempo a preocupação era apenas a diarreia aguda associada à toma do antibiótico. Atualmente, sabe-se que o impacto vai muito além disso – afeta o metabolismo, o sistema imunitário e, a longo prazo, a suscetibilidade a várias doenças.”
Ambos reforçam ainda que o uso de antibióticos deve ser particularmente criterioso durante os primeiros 1000 dias de vida – desde a gestação até aos 2 anos de idade –, período crítico na formação da microbiota e do sistema imunitário. “Perturbações nesta fase podem ter consequências a longo prazo e influenciar o risco de doenças crónicas na idade adulta”, advertem.
Microbiota: um novo órgão a preservar
Nos últimos anos, a ciência tem reconhecido a microbiota como um verdadeiro “órgão metabólico”. A investigação nesta área, explica Conceição Calhau, procura compreender como diferentes padrões microbianos influenciam o risco de doença e de que forma a antibioterapia pode alterar essas trajetórias.
“A integração da microbiota na prática clínica é urgente. É tempo de transpor o conhecimento científico para a medicina, para a nutrição e para a prescrição racional de antibióticos e probióticos”, afirma.
Para promover um uso mais responsável dos antibióticos, Hélder Pinheiro aponta como medidas prioritárias a educação e formação contínua dos profissionais de saúde, comunicação clara com os doentes, e programas de promoção do uso racional de antibióticos e de vigilância do seu consumo que permitam avaliar o uso real e promover as boas práticas.
“Os antibióticos foram uma das maiores conquistas da medicina moderna, mas a utilização abusiva destas ferramentas preciosas pode fazer-nos recuar muitos anos. O surgimento de bactérias resistentes aos antibióticos é uma verdadeira epidemia de proporções crescentes e pode colocar em perigo a nossa capacidade para tratar infeções banais. É, por isso, tempo de aprendermos a utilizá-los de forma mais racional, preferencialmente sem destruir os aliados invisíveis que vivem connosco e são essenciais à nossa saúde”, acrescentam os dois professores.



















